A escritora argentina Silvina Ocampo
(1903-1993) apenas escreveu um romance, A Promessa, que, aparentemente,
deixou inacabado, tendo sido publicado postumamente. Começou a escrevê-lo em
1960, mas a certa altura a doença ter-se-á intrometido no projecto. A edição
portuguesa, da responsabilidade da Antígona, data de 2023, com tradução de
Helena Pitta. A obra é, em aparência, uma exploração da natureza fluida tanto
da vida como da memória e é desencadeada por uma queda, essa situação
mitológica que abre o horizonte onde se desenrola a vida e a morte. Trata-se de
uma queda prosaica da narradora e protagonista, da qual não se sabe o nome e
pouco da sua situação. No entanto, a essa queda corresponde uma salvação, da
qual se suspeita a intermediária, mas não o modo. Quando se deslocava, num
transatlântico, para a cidade do Cabo, para se reunir com a parte menos
enfadonha da minha família, ao debruçar-se sobre a amurada do navio, caiu
ao mar, sem que ninguém a visse. O livro é o resultado de uma promessa a Santa
Rita, a das causas impossíveis: Não esqueci o pormenor desta atitude quando
lhe fiz a promessa de, caso me salvasse, escrever este livro e de o terminar
até ao dia do meu próximo aniversário.
O romance começa com o problema da
narradora acerca da possibilidade de publicar o texto, interrogando-se sobre
que editora o iria publicar. Isso só seria possível se acontecesse um milagre e
ela acredita em milagres. Esta preocupação é o sinal de que o impossível tinha
já acontecido. Apesar de ter caído ao mar sem que ninguém desse por isso, ela
ali estava preocupada com a publicação e recorrendo mais uma vez aos serviços
da Santa Rita. A inverosimilhança da situação narrada, a da salvação de alguém
que cai em alto-mar sem que ninguém dê por isso, é contrabalançada com o
recurso à intervenção milagrosa de uma santa que tem por missão advogar as
causas perdidas. A promessa é o próprio livro, um livro muito especial, um dicionário
de recordações às vezes vergonhosas, humilhantes. Não se pense, todavia,
que se trata de uma confissão, pois a narradora não tem vida própria, apenas
sentimentos: As minhas experiências não tiveram importância nem ao longo da
vida nem sequer à beira da morte; a vida dos outros, pelo contrária, torna-se
minha. Não é uma confissão, mas um relato de memórias de outros.
Perdida no oceano, vendo o navio a
afastar-se, decide nadar e enquanto nada, para não se deixar atrair pelo canto
de sereia da morte, deixa-se levar por um itinerário de recordações, uma
modalidade de resistência ao sono, uma espécie de itinerário que, não sem
ironia, também aconselho aos presos, aos doentes que não se conseguem mexer
ou os desesperados à beira do suicídio. A memória é então uma modalidade de
resistência à inacção e não há maior inacção do que a morte, morte que a
cercava por todos os lados e que, segundo uma visão racional, seria mais do que
certa. Existe uma confluência salvífica: a intercessão de Santa Rita e o
continuado exercício da reminiscência. Essa memória, plasmando a nossa corrente
de consciência, é feita de diversas narrativas, algumas mais complexas e com
trama romanesca, outras como meros apontamentos, histórias incoadas, mas que
não se desenvolvem. Assim, como nos repetimos, também a memória da nadadora à
beira da morte se repete, mas ao repetir-se altera ligeiramente o que tinha
contado. Um dicionário de recordações, com algumas entradas quase iguais a
outras, mas que todas elas poderiam dar lugar a um exercício narrativo mais
amplo e complexo, contos, novelas e romances, o que estaria, porém, em
contradição com a situação presente daquela que se entrega a essas recordações.
A sucessão de recordações e a luta da
protagonista pela vida, que se mistura na narrativa memorial, permitem pensar
na relação entre duas instâncias temporais, o passado e o presente. O presente
é vivido no fio da navalha, sempre sob a ameaça de haver um corte que impedirá
que o futuro se torne presente. O que permite resistir à morte é a reminiscência
do passado. O presente é sempre um buraco vazio e precisa de ser preenchido
pelos produtos da memória ou da expectativa. Numa situação de morte iminente, a
expectativa de um futuro parece impossível e o que pode alimentar e dá
combustível à luta do presente é o material proveniente do fundo da memória. A
questão, porém, é um pouco mais complexa, pois aquilo que está em jogo não é a
aventura vivida no oceano, mas a aventura de escrever e publicar o livro
prometido a Santa Rita. Sou analfabeta. Como conseguiria publicar este
texto? Que editora o receberia? Creio que seria impossível, a menos que
acontecesse um milagre. Acredito em milagres. O perigo não é morrer afogada, desse,
de modo inexplicado, ter-se-á livrado, mas o de cumprir a promessa feita a
santa Rita, isto é, escrever e publicar o livro.
O que se revela, então, na ficção de
Silvina Ocampo é uma analogia entre lutar pela vida em alto-mar e o trabalho de
escrever. A arte literária – toda a arte, porventura – é o resultado de uma
queda do artista. A escrita é o exercício de natação que o mantém à tona de
água e é alimentado pela memória, pelas histórias acumuladas que são um penhor
de salvação. O romance é uma meditação sobre a arte romanesca, na qual todo o
artista é, em última instância, um analfabeto que tem de recorrer, através de
uma promessa, à intercessão de uma santa das causas impossíveis, para que a
obra seja realizada e aceite. Toda a obra de arte é uma causa impossível que se
tornou possível pelo milagre. Só se torna artista aquele que acredita em
milagres, no milagre da sua própria arte que se consuma na obra realizada. Há,
no romance de Ocampo, uma fenomenologia da arte literária marcada por três
instâncias. A da queda no desejo de criar (em analogia com a queda da amurada
do navio), a da promessa que marca o compromisso de escrever (o exercício de
natação em alto-mar) e a do milagre da realização da obra (a salvação da morte
iminente). São cem páginas de um inteligente jogo de analogias.